quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Se não podemos, com palavras banais, exprimir coisas belas, como poderemos, com música banal, exprimir realidades transcendentes!?



Meus amigos, abaixo reproduzo um texto muito significativo para mim. A quanto tempo eu queria dizer isso:
“A qualidade é uma exigência essencial da música litúrgica. A linguagem da música deveria ser tal que uma pessoa ouvisse ou cantasse aquela beleza que um dia  virá a cantar no outro mundo. É o sentido do transcendente. Se não podemos, com palavras banais, exprimir coisas belas, como poderemos, com música banal, exprimir realidades transcendentes?”
Algumas observações sobre a Música Sacra

P. António Cartageno


Há dois pontos deste capítulo da Exortação Apostólica pós-sinodal de Bento XVI que queria sublinhar:

1. “A arte ao serviço da celebração” (nº 41 e 42)

O Papa refere as várias expressões artísticas, nomeadamente a arquitectura das Igrejas, a pintura, a escultura e a iconografia religiosa. E recomenda:
“É necessário que, em tudo o que tenha a ver com a Eucaristia, haja gosto pela beleza.”

Mas, continua o Papa, na arte da celebração ocupa lugar de destaque o canto litúrgico (n.42). E depois de algumas considerações sobre a importância do canto na liturgia, Bento XVI afirma:
”Verdadeiramente, em liturgia, não podemos dizer que tanto vale um cântico como outro”.

Isto dá-me oportunidade para sublinhar  uma das características mais importantes da música sacra: a boa qualidade formal, pois que assim o exige a dignidade do culto divino e assim o pede o seu carácter sagrado, ou seja, o seu propósito de abrir as pessoas para o invisível. Diz, a propósito,  João Paulo II no seu “Quirógrafo” sobre a Música Sacra, citando, por sua vez, Paulo VI: 
 “Não pode existir uma música destinada à celebração dos  sagrados ritos que não seja, antes, “verdadeira arte”, capaz de ter a eficácia “que a Igreja deseja obter, acolhendo na sua liturgia a arte dos sons”.

Apraz-me citar também o saudoso P. Manuel Luís, um infatigável lutador por uma música litúrgica de qualidade. Escreveu ele:
“A qualidade é uma exigência essencial da música litúrgica. A linguagem da música deveria ser tal que uma pessoa ouvisse ou cantasse aquela beleza que um dia  virá a cantar no outro mundo. É o sentido do transcendente. Se não podemos, com palavras banais, exprimir coisas belas, como poderemos, com música banal, exprimir realidades transcendentes?” (B.P.L. , nº 29-31, p.104).

A Instrução “Musicam Sacram” fala de perfeição de forma: é o valor objectivo, isto é, a fidelidade às leis da linguagem musical, o respeito pelas regras da composição, por exemplo: a melodia bem lançada, a harmonização correcta, um bom encadeamento dos acordes, o equilíbrio da distância entre as vozes, etc., etc.           

Entre as expressões musicais que melhor respondem a estas qualidades referidas está o canto gregoriano, que o Papa deseja “que se valorize adequadamente, como canto próprio da liturgia romana”. (Ver também “Quirógrafo” de J. Paulo II, nº 7; 11: c. popular religioso e 12: composições inspiradas no c. gregoriano).
2. 0 conceito de “Beleza e Liturgia” (nº 35).

O Bento XVI diz que:
a Liturgia tem uma ligação intrínseca com a beleza: é o esplendor da verdade” E explica que a beleza “não é vista como mero esteticismo, mas como modalidade com que a verdade do amor de Deus em Cristo nos alcança, fascina e arrebata, fazendo-nos sair de nós mesmos e atraindo-nos assim para a nossa verdadeira vocação: o amor”.

Mais à frente o Papa explica que na luz radiante da Ressurreição de Jesus vencedor da morte,
o esplendor da glória de Deus supera toda a beleza do mundo. A verdadeira beleza é o amor de Deus que nos foi definitivamente  revelado no mistério pascal. Ora, a beleza da liturgia pertence a este mistério…”

E conclui, dizendo que
a beleza não é um factor decorativo da acção litúrgica, mas o seu elemento constitutivo, enquanto atributo do próprio Deus e da sua revelação.”

Se aplicarmos estas ideias à música que se faz para a liturgia, quantas ilações importantes podemos tirar!

A música sacra deve transmitir beleza, santidade e comoção:

O homem, criatura de Deus, está marcado pelo dedo do seu Criador. A maneira de soltar e exprimir essas marcas é o sonho, a poesia, a música, a arte. A linguagem das artes, mais do que qualquer outra linguagem, aproxima o homem do mistério, da fonte da Beleza, de que ele próprio participa. Deus é pura Beleza. Deus é Amor. Quem ama canta. Por isso o homem, marcado por Deus, canta ao seu Deus. A música sacra é, assim, uma mediação que leva o homem a Deus, que traz Deus ao homem.

Como compositor, entendo que a música sacra  é feita para envolver as pessoas, para as “agarrar” por dentro, para as tocar, para não as deixar na mesma, para provocar nelas a abertura à transcendência. Se é verdadeira Arte, ela não deve ficar pelo sentimento, pelo “bonitinho”. Tem de ir mais fundo, apanhar a emoção, a sensibilidade, numa palavra: tocar o coração, para o abrir a Deus e ao Seu mistério.

O compositor que cria a obra, o coro, o cantor ou a simples comunidade de fiéis que canta devem fazê-lo de modo a transmitir uma mensagem de beleza e de santidade que provoque a admiração, a comoção, a adoração de Deus, a glorificação, ajudando a assembleia a aproximar-se de Deus e a experimentar a sua presença.

A música na Liturgia exerce um misterioso fascínio, penetrando fundo no coração dos fiéis, comovendo e exaltando quem a canta e quem a escuta. Cito S.to Agostinho:
 “Como eu chorei ao ouvir os vosso hinos, as vossos cânticos (eram os cânticos do bispo S.to Ambrósio), as suaves harmonias que ecoavam pela vossa Igreja! Que emoção me causavam! Passavam pelos meus ouvidos, derramando a verdade no meu coração. Um grande impulso de piedade me elevava e as lágrimas rolavam-me pela face; mas faziam-me bem.”    Santo Agostinho, Confissões, 9, 6, 14.

Cito também, a propósito, a pintora Emília Nadal. Ela refere-se à celebração litúrgica, na qual a música tem um lugar de destaque:
Nela, a  harmonia e a beleza deveriam ser o espelho do esplendor da verdade e da bondade de Deus. Ela deveria ser a porta para o sublime, a qual abriria os sentidos e a percepção estética à revelação da glória divina, conduzindo-nos ao louvor e à adoração.”
Emília Nadal in  “Artes e celebrações cristãs”- Brotéria, vol. 140, nº3 – 1995, pág. 268.

Cito também uma entrevista de um dos organistas de  Notre –Dame de Paris: Depois de dizer que muitos dos que abandonaram as liturgias de domingo estão agora nos museus, nos concertos, a admirar as obras- primas da arte cristã ( a pintura, a arquitectura, a música…),  pergunta:
Tratar-se-á apenas de uma necessidade estética, que nada tem a ver com a fé  ou, ao contrário, da procura de uma  elevação espiritual através da arte?  (…) Não tem ela ( a arte)  o poder de, pelo atalho da beleza estética que provoca emoção, tirar o homem momentaneamente dos seus  tormentos, de lhe dar desejo de amar, de despertar nele, às vezes,  o traçado ontológico da sua origem divina? Porque a arte sacra não contribui apenas para  elevar o crente até Deus, mas, talvez, às vezes,  para a passagem de Deus pelo não crente”.
Citado na VOZ PORTUCALENSE, na rubrica do S.D.L.

Não posso deixar de citar também o Cardeal Ratzinger (hoje Papa) numa entrevista que deu em 1985 a Vittorio Messori - (“Diálogos sobre a fé”), onde, entre vários temas, fala também da música sacra. Diz ele que,
apesar de o Concílio  considerar a música sacra  “o tesouro da Igreja”,  muitos liturgistas puseram de lado esse tesouro em nome da compreensão por todos da liturgia pós-conciliar. Portanto, não mais música sacra, relegada, quando muito, a ocasiões especiais, nas catedrais, mas somente música utilitária, canções, melodias fáceis, coisas corriqueiras”. Segundo ele,  “o abandono da beleza mostrou-se uma causa de derrota pastoral”. E diz ainda: “Torna-se cada vez mais perceptível o pavoroso empobrecimento que se manifesta onde se expulsou a beleza, sujeitando-se ao útil(…) Uma Igreja que se limita apenas a fazer música “corrente” cai na incapacidade e torna-se, ela mesma, incapaz. A Igreja tem o dever de ser também ‘cidade da glória’, lugar em que se reúnem e se elevam aos ouvidos de Deus as vozes mais profundas da humanidade. A Igreja não pode satisfazer-se com o ‘ordinário’, com o usual. Deve reavivar a voz do cosmos, glorificando o Criador e revelando do próprio cosmos a sua magnificência, tornando-o belo, habitável e humano”…

A CARTA AOS ARTISTAS  de João Paulo II, de 4 de Abril de 1999, é um interessante
documento que coloca muito bem as relações entre a Arte (neste caso a arte da Música), a Beleza e a consequente procura de Deus.

No n.º 3 diz:
O tema da beleza é qualificante, ao falar de arte. (…) Ao pôr em relevo que tudo o que tinha criado era bom (Gn. 1, 31), Deus viu também que era belo. Em certo sentido, a beleza é a expressão visível do bem, do mesmo modo que o bem é a condição metafísica da beleza. (…) O artista vive numa relação peculiar com a beleza. Pode-se dizer, com profunda verdade, que a beleza é a vocação a que o Criador o chamou com o dom do “talento artístico”.

No n.º 11 o Papa lembra o espírito de profunda estima pela beleza   por parte dos Padres Conciliares e cita uma passagem da “Saudação aos Artistas”:
“O mundo em que vivemos tem necessidade de beleza para não cair no desespero. A beleza, como a verdade, é  a que traz alegria ao coração dos homens, é este fruto precioso que resiste ao passar do tempo, que une as gerações e as faz comungar na admiração.”
Mensagem do Concílio aos Artistas, 8/12/65: AAS 58 (1966), 13.

E no nº 16, “A  Beleza que salva”,  o Papa recomenda aos artistas (músicos incluídos):
A beleza, que transmitireis  às gerações futuras, seja tal que avive nelas o assombro. Diante da sacralidade da vida e do ser humano, diante das maravilhas do universo, o assombro é a única atitude condigna.(…) Com o entusiasmo que brota do assombro, a humanidade poderá, depois de cada extravio, levantar-se de novo e retomar o seu caminho. Precisamente neste sentido foi dito, com profunda “a beleza salvará o mundo” (F. Dostoievskij)

E quase a terminar:
A beleza é chave do mistério e apelo ao transcendente. É convite a saborear a vida e a sonhar o futuro.(…) Que as vossas múltiplas sendas, artistas do mundo, possam todas ser conduzidas àquele Oceano infinito de beleza, onde o assombro se converte em admiração, inebriamento, alegria inexprimível. (…) Que a vossa arte contribua para a consolidação duma beleza autêntica que, como reflexo do Espírito de Deus, transfigure a matéria, abrindo os ânimos ao sentido  do eterno

Para concluir, permitam-me uma nota de carácter pessoal: Eu gostava que a minha música fosse assim, nesta direcção apontada por João Paulo II e também por Bento XVI, como vimos atrás.  E quando a escrevo preocupo-me por que assim seja, mas nem sempre o consigo…

É uma responsabilidade enorme escrever música para a liturgia, quando se sabe que, por definição, ela deve contribuir  para “a glória de Deus e a santificação dos homens”. Nela, ritmo, melodia, dinâmica e harmonia, em conjugação com a palavra,  devem constituir um todo que toque afectividade, a emoção, o sentimento, a inteligência – o homem todo – de modo a fazê-lo melhor, a despertar nele dimensões porventura adormecidas e a guiá-lo para a eterna beleza.

                                                                                                          P. António Cartageno

Um comentário: